Corrupção, uma perspectiva psicanalítica
Para a Psicanálise, a corrupção pode ser entendida como um processo que se produz no entrecruzamento de três espaços psíquicos distintos: a) individual, em que um sujeito com fortes traços paranoicos acede a uma posição de poder; b) intersubjetivo, no qual a pessoa que tem poder “enlouquece” com a ajuda das pessoas com quem convive; e c) transubjetivo, em que a corrupção é transformada em uma instituição e em uma cultura.
![]() ![]() 2017-04-22 Começo abordando o espaço psíquico individual em seu funcionamento paranoico. O termo “indivíduo” aqui se refere tanto a uma pessoa, quanto a um grupo, por exemplo, um partido político. Psiquicamente, o paranoico não é capaz de conceber, nem de processar, situações complexas. As situações são simplificadas e reduzidas a um esquema binário no qual o bem e o mal são vividos como absolutos. Sua visão de mundo é sempre “nós, os bons, contra eles, os maus”. O paranoico se percebe como perfeito, melhor do que os outros: é justo, correto e bom, enquanto os outros são injustos, estão errados e são do mal. Se é acusado de alguma coisa, se ofende, porque a acusação é vivida como injusta. Sente-se cronicamente lesado em seus direitos, por isso é ressentido e rancoroso. Estrutura-se em torno do ódio ao outro, sempre visto como inimigo e como ameaça a seus projetos pessoais. Nessas condições, o paranoico pode se tornar violento, e as pessoas sentem medo dele. Para Elias Canetti, o paranoico, como o ditador, sofre de uma doença do poder. Esta se caracteriza por uma vontade patológica de sobrevivência exclusiva, e por uma disposição, ou mesmo um impulso, para sacrificar o resto do mundo em nome desta sobrevivência. Naturalmente, a relação entre paranoia e poder é complexa e, mesmo correndo o risco de generalizações abusivas, arrisco uma hipótese. Por um lado, é possível que aceder a uma posição de poder “acorde” o núcleo paranoico do sujeito – núcleo que todos nós abrigamos em alguma medida. Por outro, é possível que a visão de mundo determinada por fortes traços paranoicos torne o poder particularmente atraente, ou necessário, para tais sujeitos. O fato é que a História mostra que a associação entre paranoia e poder é tão frequente quanto perigosa. O importante é que o paranoico se põe no centro do mundo: só existe uma opinião válida, a dele. Por isso, seus objetivos, que são sempre bons, justos e nobres, justificam os meios. Ele fará qualquer coisa para alcançar seus objetivos. É um primeiro solo propício para a prática da corrupção em nível individual. O segundo espaço psíquico que contribui para o fenômeno da corrupção é o espaço intersubjetivo. Para a Psicanálise, ninguém enlouquece sozinho, mas no espaço psíquico constituído pela relação com outros sujeitos. O poderoso pode enlouquecer num vínculo com pessoas que, sistematicamente, assumem uma posição reverente, intimidada, subserviente, de devoção fascinada e apaixonada. Por todas as características já descritas, o paranoico está bem talhado para produzir exatamente este tipo de reação nas pessoas que o cercam. Aliás, é a mesma atitude acrítica que a criança pequena tem em relação aos pais, que são vividos como aqueles que “podem tudo”. Vale lembrar que nessa posição transferencial os sujeitos que se submetem – e não ousam enfrentar o poderoso – também usufruem do amor e da proteção dessa figura parental, vivida como onipotente. Ou seja, no nível intersubjetivo, todos têm medo de sua fúria, mas desejam seu amor. Por isso, aceitam pagar o preço da submissão absoluta. Quem ousaria levantar o braço contra o pai da horda? Cria-se, assim, uma dinâmica que contribui para perpetuar o sistema. Quanto mais todos se submetem, mais contribuem para empoderar essa figura parental. E quanto mais ele é empoderado, mais se comportam como crianças aterrorizadas. Humilhada, a sociedade civil vai perdendo sua dignidade e sua autoestima. Vai ficando apática, perde a esperança em uma vida melhor, mais justa, livre do arbítrio dos poderosos. De forma complementar, o poderoso acaba enlouquecendo quando se identifica, isto é, quando “acredita” na mensagem que lhe é transmitida inconscientemente pelo lado mais infantil das pessoas com quem convive: que ele é superior aos outros e por isso tem o direito e o dever de gozar mais do que todos. Desta perspectiva, a corrupção pode ser entendida como sintoma de certo tipo de enlouquecimento – não no sentido de doença mental, mas no de hybris, palavra que em grego significa excesso ou desmesura. A hybris pode acometer a pessoa que tem poder político, financeiro e/ou simbólico. Sua loucura consiste em tentar se igualar aos deuses – que não precisam temer nada porque estão acima do bem e do mal. Quanto mais ficamos fascinados numa posição de submissão apaixonada, menos nos atrevemos a lhe mostrar que a lei vale para todos, e mais contribuímos para enlouquecer quem tem poder. Nesse segundo nível, a impunidade que decorre da submissão transferencial é outro fator propício ao desenvolvimento da corrupção. O terceiro espaço psíquico que contribui para o fenômeno da corrupção é o transubjetivo ou institucional. É certamente o mais grave e o mais difícil de ser erradicado porque implica em mudar uma cultura. No primeiro caso, quando a corrupção ainda é individual, não é difícil punir um único sujeito, e no segundo, quando a questão é intersubjetiva, o poder judiciário pode funcionar como um Outro que acena com a castração. Para a psicanálise, os sistemas simbólicos instituídos em certa época e lugar formam o pano de fundo de nossa vida psíquica. Isto quer dizer que instituem ideias e valores que determinam nossa maneira de sentir, pensar e agir. Além do medo e da infantilização cultivados no espaço psíquico intersubjetivo, a impossibilidade de reagir se deve ao fato de que a corrupção se tornou, ela mesma, uma instituição. Isso significa que agora ela tem poder para instituir um modo de vida que se torna natural, como se não houvesse outra forma de viver fora do domínio da máfia. A repressão se torna desnecessária, pois a própria ideia de se revoltar contra o sistema se tornou impossível. Nesse momento a corrupção deixou de ser uma prática ocasional para se tornar uma instituição e uma cultura. Esse processo se dá em duas etapas: a desnaturação da ordem simbólica que funda uma instituição, e a institucionalização da corrupção, que se torna um modo de vida. A primeira acontece quando alguém, que ocupa formalmente o cargo de representante de uma instituição, se “demite psiquicamente” de seu lugar simbólico: ele deixa de sustentar, através de seus atos cotidianos, os valores instituídos. (Como veremos, a reversão do processo depende, inversamente, da transferência que se estabelece entre os atores sociais e figuras que encarnam a lei). Em vez disso, coloca interesses pessoais acima dos interesses da instituição. O efeito dessa “demissão” é a corrupção e desnaturação da própria ordem simbólica que funda e sustenta aquela instituição. Um exemplo ajudará a esclarecer essa ideia. Quando um juiz se deixa subornar, ou simplesmente intimidar, – e vimos acima como o paranoico pode se tornar violento a ponto de realmente causar medo – ele está se “demitindo” de seu lugar simbólico. O que acontece então é que o vínculo, até então naturalizado, entre a palavra “juiz” e o significado “justiça”, vai se enfraquecendo, até que, no limite, se dissolve e se desnatura. Segue-se um efeito em dominó: todas as palavras ligadas a este sistema simbólico perdem o lastro que a instituição viva, e o símbolo forte, garantiam. Em lugar de inspirar afetos do tipo temor respeitoso, a toga e a beca nos parecem roupas engraçadas; as palavras: “réu”, “culpa”, “transgressão”, “punição”, “lei”, “justiça”, continuam existindo no vocabulário, mas estão vazias de significado emocional: já não acreditamos nelas. A instituição se torna disfuncional; ideias e valores que justificavam sua existência entram em crise. Instala-se uma condição de miséria simbólica que deixa as pessoas sem rumo. O suborno do juiz corrompe a instituição justiça. Paralelamente, a corrupção se institucionaliza: torna-se uma cultura que tende a se reproduzir de forma autônoma. O pacto social está baseado em um “contrato” mediante o qual cada um de nós aceita renunciar às aspirações infantis de realizar todos os nossos desejos de forma absoluta, para, em troca, fazer parte da comunidade humana. Aceitamos que a lei vale para todos porque todos precisamos da proteção da lei. A renúncia ao absoluto e a submissão à lei, contudo, são feitas a contragosto, e nunca de forma definitiva. Gastamos bastante energia psíquica para fazer a gestão desses desejos e mantê-los sob certo controle civilizado. Por isso, essas fantasias regressivas de plenitude e onipotência, que estão latentes em todos nós, podem ser “acordadas” a qualquer momento. Basta que “alguém” acene com esta possibilidade: aí é a fome com a vontade de comer. Este “alguém” é a máfia, instituição que transformou a corrupção em valor e modo de vida. Ela seduz o sujeito propondo-lhe um pacto perverso no lugar do pacto social: ele é convidado a desqualificar a lei e a renúncia, em troca da possibilidade de realizar o desejo imorredouro de transcender os limites inerentes à condição humana. A desqualificação da lei se torna um valor e origina um modo de vida. Não é difícil perceber que o pacto perverso não tem condições de garantir a vida em sociedade. *A corrupção é uma grave “patologia social” – tem sido comparada a um câncer que infiltra e destrói as instituições – porque institui como valor a desqualificação da lei. Não apenas da lei definida pela Constituição, mas também da lei no sentido psicanalítico do termo: aquela que nos torna humanos na medida em que coloca limites à desmesura de nossos desejos fundando, assim, o pacto social. Por isso a corrupção pode ser definida como o processo por meio do qual a desqualificação da lei vai sendo institucionalizada. O pacto perverso se completa quanto a corrupção se torna, em si mesma, uma instituição. A desconstrução desse processo – o movimento em direção à “cura” desta patologia social – depende de uma mudança de posição subjetiva dos atores sociais, o que só pode acontecer se houver transferência com figuras parentais que encarnam a lei. Nesse sentido, se aproxima de um processo analítico. Ao contrário do pai da horda, essas figuras sustentam a lei não apenas com seu discurso, mas com seus atos. Afirmam a validade do pacto social contra o pacto perverso. Em vez de convocar o lado mais regredido da sociedade, convocam seu lado mais adulto. Esses líderes se implicam diretamente no processo falando – interpretando – a partir deste novo lugar transferencial. Sem desconhecer e empatizar com o sofrimento da sociedade, apontam também como cada um tem sua parte de responsabilidade na reprodução da cultura perversa. Seu investimento libidinal não é pequeno: mobilizam e organizam os diversos setores da sociedade que estavam dispersos, apáticos e melancolizados. Antecipam, com esse investimento, a potência possível que se encontra latente. Para tanto, será preciso desidealizar o pai da horda: uma pessoa poderosa só é poderosa em função das circunstâncias, e pode perfeitamente ser destituída de todo o seu poder. A castração vale também para ela! A mudança de posição acontece quando a população se dá conta de que ninguém virá salvá-los, e se apropria de uma luta que é sua, e de mais ninguém. Nesse sentido, a liderança que funciona psiquicamente a partir da posição depressiva pode catalisar uma transformação social quando esta estiver madura para acontecer. Os primeiros movimentos serão necessariamente sofridos e sangrentos: mudar uma cultura sempre custa sangue. Acredito que este é o momento no qual nós, brasileiros, estamos. A sucessão de escândalos que vem sendo noticiada e punida nos últimos anos mostra que a sociedade brasileira está em pleno processo de mudança de posição subjetiva frente à corrupção institucionalizada. Os poderosos de ontem, que acreditavam piamente na impunidade, hoje sentem medo e reagem com a violência esperada. Estamos todos atentos aos possíveis movimentos de “reação terapêutica negativa” da própria sociedade, pois sempre existe a possibilidade de que a população abandone a luta e tudo termine “em pizza” – expressão que significa “terminar como sempre terminou”, isto é, em impunidade.
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