Estas líneas são o produto entretecido de muitas ideias pensadas no nosso espaço de trabalho, sem pretensão de chegar a esclarecimentos taxativos em relação a uma temática tão velha como algumas das profissões do mundo, evitando abandonar o pensamento psicanalítico nestas questões tão enlaçadas com a política, a economia, a sociologia… o poder.
![]() ![]() 2017-04-22 Mas pronto, Sigmund Freud, com seus textos sociais, ousou ir para lá do consultório para analisar, desde sua invenção, o espírito da sua época, seu zeitgeist. E então… Por que não seguirmos com este costume, desde diferentes geografias e abordagens? Assim, conforme avançavam nossas discussões, fomos reparando na dinâmica subjacente nas relações corruptas, perversas, sobre as quais a psicanálise ofereceu muitas produções teóricas e clínicas. Relações que geram distintos vínculos: relações entre um sujeito onipotente e sujeitos devindos objetos sem capacidade de empoderamento; relações entre lideranças e grupos que funcionam como hordas primevas guiadas por lógicas mafiosas. Vínculos entre sujeitos em posição de desvalimento que dependem de um líder, com quem podem manter um laço de supervivência, de proteção; líder que pode fornecer segurança tanto material como psíquica. Desse modo, começamos a pensar na bidimensionalidade deste tipo de relações, onde não existiria outra coisa que esse pacto/código entre um líder (a quem chamarei o Um) e os subscritores do mesmo. Pacto perverso que relega a terceiridade, a modo de lei externa que regule esta relação. Terceiridade que pode constituir conhecimento, ou seja a possibilidade de descobrir outros caminhos e segui-los, tão simples como isso. Sobre o Uno, a bidimensionalidade e a terceiridade, voltarei mais tarde. Ocorreu-nos pensar, também, na importância que tem o congelamento da alteridade na produção do pacto corrupto, ou seja o apagamento do outro como par, como próximo… vale dizer, a eliminação de toda empatia com o outro, empatia inclusive não nascida ou desiludida em muitos casos. Operação necessária para dar rédea solta ao excesso e a à voracidade, com a finalidade de satisfazer as ânsias narcísicas enriquecedoras de uma onipotência patológica, dada pela lei do pai da horda primeva que mencionava Freud em Totem e Tabu, fazendo a exceção de que na nossa época, além disso, exalta-se o individualismo e o êxito como fim sem importar os médios. Desse modo, passamos a considerar essa instância onde uma série de pessoas isoladas e sometidas se agrupa para ter poder e assim combater uma força abusadora. Acontece que conseguido o propósito, ou seja, de ter vencido a força que violentava este grupo de pessoas, agora este descobre um novo poder de livre disposição, que não só oferece a possibilidade de estabelecer uma lei justa, mas também a possibilidade de dar rédea solta aos impulsos quebrando os diques psíquicos que impedem o excesso, reproduzindo-se assim a lei do Um, em um fenômeno que não exclui a massa. Mas para que isto se mantenha no tempo, é necessário que se naturalize a existência, a ideia de uma corrupção generalizada, ficando avalizadas as práticas de certos líderes representantes de instituições públicas, privadas ou mistas. E isto acontece através de certa dialética na que, quase sub-repticiamente, o sujeito ficaria envolvido, sendo compelido a realizar ações transgressoras por necessidade de defesa vital, de supervivência. Complexizando a questão, mas sem deixar de lado a ideia tensão permanente entre a “autonomia individual” e a “autonomia social” que atravessa este trabalho, temos de lembrar que a lei escrita, legal e jurídica não implica que seja justa, apenas pela sua existência, visto que podem existir leis perversas (e a história tem seus exemplos). E também que as leis são obedecidas porque têm autoridade por via do terror ou por via do reconhecimento. E que tem leis não escritas nos papéis, assunto do qual pretendemos dar conta. Então, supostamente há acordos, pactos sociais estabelecidos graças à evolução do tecido social, a partir de acordos comunitários, dos quais o mítico pacto fraterno dá conta, não isento dessa tensão consistente no impulso permanente a transgredi-lo, destruí-lo, no sentido que Freud alertara nos seus textos sociais. Metaforicamente, a passagem da lei do Um ficaria em permanente tensão, ou seja, do pai da horda primeva que privava os irmãos do bem cobiçado, as mulheres, a lei da Comunidade dada a si própria pela comunidade de irmãos depois de se terem rebelado. Proibindo-se, a partir disso, o consumo incestuoso das mulheres do mesmo clã, habilitando o intercâmbio exogâmico: esta mulher continuará interdita, as de fora, agora não. Poderíamos recorrer, só nesta instância mítica e suas repetições, às palavras de Albert Camus: “a rebelião é o ato do homem informado que possui a consciência de seus direitos” diante do absurdo de uma injusta e incompreensível. Uma vez adquiridos os direitos e sua satisfação, fica estabelecida uma tensão entre o poder, a lei e os direitos; em suma, o permanente mal-estar na cultura. Culturas cujas comunidades ou sociedades, se quisermos, estão inseridas em um tecido que tem seus representantes, muitos deles objeto de idealização, como poderia ter sido aquele mítico Grande Homem (der grosse mann) que Freud mencionara em O Homem Moisés e a Religião Monoteista. Grande Homem que mantinha certos direitos igualitários e compensatórios sobre a fratria, em uma progressão utópica para uma “Idade de Ouro” da humanidade, algo que já Freud salientava como sendo de difícil realização, visto que toda “cultura deve levantar-se sobre uma compulsão e uma renúncia do pulsional ” (1927, p.6). Neste ponto, tem cabimento estabelecer uma diferença entre o conceito de sociedade e o de comunidade, ainda em vigor desde as Ciências Sociais. Durkheim salientava esta diferença na passagem da rede comunitária à rede da sociedade industrial. No coletivo comunitário a percepção do outro era concreta, real, e as leis se aplicavam sobre o transgressor em forma direta. Na sociedade capitalista e/ou industrial, a percepção do outro, do próximo, tornou-se difusa, e as leis se tornaram abstratas, exigindo-se responder ante o sistema social e já não ante um sujeito singular. Essa identificação com o representante social (ou comunitário) idealizado implicaria uma atribuição imaginária de poder e prestígio e –ao mesmo tempo- a ambição de ocupar esse lugar. Poderia se iniciar, então, um caminho para a substituição do representante em questão através da imitação, processo que –em muitos casos- pode incluir o submetimento como primeira parte desta dinâmica... Mas, significa o mesmo corrupto que transgressor? Achamos importante distinguir isto, colocando o primeiro como detentor de um poder que perpetua e impõe no tempo um sistema discursivo no qual se diz uma coisa, mas se pratica uma outra (como uma das variantes da corrupção). Por exemplo, a certificação do cumprimento de certos controles para a importação ou exportação: porém com uma propina rapidamente se consegue a certificação, sendo evitados, desse modo, os “chatos e incômodos caminhos burocráticos da legalidade”. O corrupto seria quem promove este sistema, já o transgressor seria quem atua esse sistema. Portanto, aquele ator circunstancial ou por extrema necessidade, seria considerado transgressor da lei, tendo cabimento a pergunta sobre se é corrupção não pagar impostos sobre os produtos obtidos, a partir do próprio esforço porque se se torna impossível... Neste ponto, reparamos em certa armadilha nesta pregunta: fazê-la significaria preparar o terreno para que quem transgrede por necessidade, ingresse em um sistema corrupto, naturalizando-o, sendo anulada sua possibilidade de denunciar ou ainda questionar a quem rouba milhões desde a função pública, por exemplo. Neste sentido, recordamos que a máfia (instituição paradigmática para a nossa finalidade) teve sua origem em uma necessidade da comunidade de Sicília de se proteger do poder central de Itália, a meados do século XIX, o que incluía o pagamento de impostos aos gabellotti (arrecadadores) representantes do poder central. O sistema de proteção, associado no começo por laços de sangue, foi bem-sucedido. Porém, depois, se tornou um sistema de extorsão que incluía a ameaça de destruição dentro das mesmas comunidades. Neste ponto, voltamos ao confronto mítico do poder comunitário com o poder do Um: o que deu nascimento ao primeiro direito que Freud aprecia em Totem e Tabu, opondo a força do Um à força da nova comunidade de forças, gerando-se ali a lei compartilhada por todos, a comunidade de irmãos. A corrupção apareceria como diluição dessa transação mítica, localizando-se na conformação de grupos de hordas de irmãos (equiparável a máfias) que têm em si um poder, tanto receado como, às vezes, almejado. Poder que permite o excesso, como ato violento diante do fraco, diante da comunidade desagregada, desintegrada, em uma dupla responsabilidade. Por um lado, o detentor do poder, e por outro os executores secundários, com seus danos diretos e indiretos. Por um lado, estaria o possuidor do semblante de pai poderoso, protetor e receado, e por outro aqueles que procuram nele proteção e certos benefícios, ainda que seja para a sobrevivência, renunciando ao empoderamento, o que significa valer-se por si próprios. Seria almejado o acesso ao lugar admirado, para lá do tipo de poder, em uma dupla infantilização: a do corrupto –onipotente que não necessita ninguém, salvo como objetos servidores de si-, como a do seguidor/desvalido que se coloca em uma posição de demanda de proteção por desvalimento: poderia ser dito que não sabe o que realmente paga com essa transação, o que perde. Voltando para gênese mítica do primeiro direito, a partir da confabulação dos irmãos da horda primeva, o do acontecido com a máfia em Sicília no começo, pareceria que sempre há um potencial ponto de quebra onde a instauração da lei comunitária (ou social, si quisermos) não acaba de impedir o excesso da compensação narcísica ou de auto-conservação, uma vez que esta tem começado o seu desenvolvimento: uma vez desvendado o poder de massa que outorga a aliança de vários, o grupo da rédea solta à agressão, reproduzindo-se o sistema primário. É o que –em geral- parece ter acontecido com grupos que proclamavam o bem comum, depois de acessar aos espaços poder almejados. Em suma, o poder se torna abuso de poder, e –em forma piramidal-, o mesmo é exercido até as partes inferiores da organização, por exemplo, em um tecido que implica laços de tipo “sanguíneos”, gerando uma junção que impede a terceiridade, sob ameaça de morte: a denúncia implica terceiridade, mas a ameaça de castigo pela violação do silêncio devido, perpetua a bidimensionalidade do contrato perverso. Espécie de contrato incestuoso que inibe o conhecimento como caminho possível para a terceiridade: o reparar na existência de uma relação perversa que derivaria no aparecimento de um direito, que consistiria em se libertar deste contrato. Assim, entramos de vez na natureza violenta da corrupção, pois é um sistema que irrompe e força a vontade do sujeito em sociedade: alguns são captados como parte funcional do sistema em chave de gozo (a inclinação à atuação), outros são submetidos a praticarem atos de “negociação” sob cordas em chave de submissão (a transação perversa), para acessar a certos benefícios de supervivência como única possibilidade visível (“no queda otra”, el “todo es así”, “siempre foi igual”)[3]. Dá se a reprodução da relação entre o pervertedor e o pervertido, o que em suma é corrupção (relação entre o perverso e a “parte” perversa –infantil- do neurótico afirmariam alguns). No dizer de Guillermo Carvajal, “quando permitimos a perversão, de maneira ativa ou passiva, estamos educando em corrupção” e “se atuo o impulso cru, sou perverso. Se ensino a fazê-lo, sou corrupto”. Esse grande outro, poderia representar o papel de (1) pai da horda primeva, (2) ser caracterizado como o modelo da sociedade de consumo que assinala que pertences devemos possuir para garantir o pertencimento, para ser levados em conta, a modo de condição de existência, (3) ser um líder carismático, (4) ou ser o pai simbólico que outorga acesso ao imperativo kantiano, por mencionar algumas possibilidades. Subscrição de um pacto de submetimento que propõe uma isca para o subscritor: cria um laço, um ser levado em conta. A voracidade do consumo, de possuir, torna-se um antídoto quase mágico diante da “corrupção” produzida pela passagem do tempo no corpo e no psiquismo. Possuir que não necessariamente tem a ver com o consumo ou a posse de objetos, mas também com a posse de vontades, tanto nos denominados regimes capitalistas, neoliberais como naqueles que são sua suposta antítese. Ser levado em conta por este grande outro pode implicar e justificar o custo de quebrar com o pacto social com a alteridade no sentido amplo, gerando-se um escotoma social, para aderir e identificar-se com o pai primordial interno, o que em última instância significa possuir a mãe, mulher de mulheres… Não há possibilidade de alteridade, porque esse reconhecimento alteraria a integridade do sujeito corrupto, negando onipotentemente a passagem do tempo. Poderíamos pensar que é a repetição do “apoderamento” daquilo do outro para Ser, tornando-se imperativo “ter para ser”. O avesso seria a transformação desta pulsão de apoderamento em “empoderamento”, onde alguém pode desenvolver suas potencialidades e capacidades com certa autonomia em associação comunitária, em certa sintonia com a tensão equilibrada que mencionava Castoriadis entre as necessárias “autonomia individual” e a “autonomia social”. Isto conduz a uma tensão entre a subsistência material (concretude) e a subsistência psíquica (simbólica). O que nos conduz também à condição do “sentido” da existência, onde para alguns o único sentido de existência é a voracidade, consumir como solução derivada da pulsão oral-canibálica sem desenvolvimento ulterior, e onde para outros o único sentido de existência é ser levado em conta por outro (quer o governante de turno, quer uma ideologia). Em primeiro lugar teríamos a possessão da mãe (bidimensionalidade, simbiose e até fusão), no segundo, bem, um leque de possibilidades, incluindo uma interdição que ficou a meio caminho, a necessidade dominante de ser levado em consideração pelo outro, e tal vez como um déficit no processo de subjetivação. Quiçá, para ir findando, neste ponto se entenderia a razão pela qual certos conglomerados acompanham o comportamento corrupto de grupos de poder: porque em um ponto teria que ser realizado o árduo trabalho de quebrar certo cordão umbilical que funciona como vínculo vital e único, para lá do qual não existiria nada que possa sustentar esse psiquismo, e também –uma vez vencida esta bidimensionalidade- reconhecer os outros como próximos, como alteridade comunitária ampliada. Mas pronto, sob o risco de ficar a meio caminho, e pensando que quicá neste ponto nos achemos à beira da questão do fanatismo, ao fazer referência à adesão passional a lideranças perversos que negam a diferença, vamos fechando a nossa breve exposição com a esperança de incentivar o intercâmbio. ---
[1] O Departamento de Psicanálise e Sociedade da APA é integrado por Gabriela Hirschl, Gustavo Dupuy, Rut Diacovetzky, Jacobo Gutman, Martha Nowik, María Inés Irribarren, Leopoldo Galak e Cecilia Moise. Agradecemos a Eduardo Gosende e Romina Alves, candidatos da APA, pelos esclarecimentos sociológicos e também a tradução para o português, realizada por Romina, de dois dos trabalhos que compõe esta jornada. [2] Membro aderente da Associação Psicanalítica Argentina, coordenador do Departamento de Psicanálise e Sociedade e da subcomissão de Enlace Legislativo / juanpinetta@red-net.ar . [3] NDT. Série de expressões usadas em espanhol que refletem o caráter de desesperança experimentada por alguns sujeitos sob as condições referidas. As frases poderiam ser traduzidas pelos equivalentes em português: “fazer o quê?”, “é tudo igual”, “sempre foi assim/igual”.
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